Nas estradas e encruzilhadas da Vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

09
Fev 12

Arrumando e rearrumando papeis antigos, na presunção de manter viva a lembrança de um tempo que irremediavelmente desapareceu na voragem do movimento planetário que gera e cavalga o tempo, encontrei estes versos da juvenília. São dois glosamentos em forma imitada de Bocage. Não importa, agora, a qualidade; apenas dou a conhecer o que eu escrevia e como escrevia, na adolescência. Revisitar o passado é, muito vezes, acariciar a memória do que fomos.


I

O PENEDO

Oh, alta serra das neves
donde o penedo caiu!...
Ninguém diga o que não sabe
nem afirme o que não viu!

(quadra popular)


1
Nas asas do pensamento,
que nunca as houve mais leves,
encontrei-me, num momento,
«oh, alta serra das neves»,
no teu cume de cristal,
onde o reino vegetal
jamais medrou ou floriu!
Lá vi, do alto duma fraga,
essa parte, agora vaga,
«donde o penedo caiu».


2
Pelos fraguedos rolando,
que a desgraça a todos cabe,
foi ao mundo aconselhando:
«ninguém diga o que não sabe!»
Do tumular desfiladeiro,
já no esforço derradeiro,
que a voz do eco repetiu
por vales e por montanhas,
ainda arrancou das entranhas:
«nem afirme o que não viu!»




II

LUTA INTERIOR


Comigo me desavim,
sou posto em todos o perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Francisco Sá de Miranda
(1481-1558)




1
Cansado de procurar
a Lei do Princípio e Fim,
sem a poder encontrar,
«comigo me desavim».
Que razão em vão procuro
do Passado e do Futuro?
Como louco me persigo!
Quero hoje, amanhã não quero!
E, com tanto desespero,
«sou posto em todo o perigo».


2
Este viver, mar de fel,
a todo o instante maldigo.
Não posso viver com ele,
«não posso viver comigo»!
Esta vida, este martírio,
este constante delírio,
só na morte terá fim...
Meu destino está traçado:
Não posso fugir do Fado
«nem posso fugir de mim»!


Nota:
Textos com uma única publicação, no jornal República (suplemento República das Letras e das Artes), em 27 de Agosto de 1965.
Cordiais saudações.

publicado por Do-verbo às 23:13

03
Fev 12
Frei Betto
(Escritor e assessor de movimentos sociais)

Adital



O melhor Papai-Noel do mundo mereceram 523 instituições financeiras europeias quatro dias antes do Natal: 489 bilhões de euros (o equivalente a R$ 1,23 trilhão), emprestados pelo BCE (Banco Central Europeu) a juros de 1% ao ano!


Curiosa a lógica que rege o sistema capitalista: nunca há recursos para salvar vidas, erradicar a fome, reduzir a degradação ambiental, produzir medicamentos e distribuí-los gratuitamente. Em se tratando da saúde dos bancos, o dinheiro aparece num passe de mágica!


Há, contudo, um aspecto preocupante em tamanha generosidade: se tantas instituições financeiras entraram na fila do bolsa-BCE, é sinal de que não andam bem das pernas…


Quais os fundamentos dessa lógica que considera mais importante salvar o Mercado que vidas humanas? Um deles é este mito de nossa cultura: o sacrifício de Isaac por Abraão (Gênesis 22, 1-19).


No relato bíblico, Abraão deve provar a sua fé sacrificando a Javé seu único filho, Isaac. No exato momento em que, no alto da montanha, prepara a faca para matar o filho, o anjo intervém e impede Abraão de consumar o ato. A prova de fé fora dada pela disposição de matar. Em recompensa, Javé cobre Abraão de bênçãos e multiplica-lhe a descendência como as estrelas do céu e as areias do mar.


Essa leitura, pela ótica do poder, aponta a morte como caminho para a vida. Toda grande causa - como a fé em Javé - exige pequenos sacrifícios que acentuem a magnitude dos ideais abraçados. Assim, a morte provocada, fruto do desinteresse do Mercado por vidas humanas, passa a integrar a lógica do poder, como o sacrifício "necessário” do filho Isaac pelo pai Abraão, em obediência à vontade soberana de Deus.


Abraão era o intermediário entre o filho e Deus, assim como o FMI e o BCE fazem a ponte entre os bancos e os ideais de prosperidade capitalista dos governos europeus - que, para escapar da crise, devem promover sacrifícios.


Essa mesma lógica informa o inconsciente do patrão que sonega o salário de seus empregados sob pretexto de capitalizar e multiplicar a prosperidade geral, e criar mais empregos. Também leva o governo a acusar as greves de responsáveis pelo caos econômico, mesmo sabendo que resultam dos baixos salários pagos aos que tanto trabalham sem ao menos a recompensa de uma vida digna.


O deus da razão do Mercado merece, como prova de fidelidade, o sacrifício de todo um povo. Todos os ideais estão prenhes de promessas de vida: a prosperidade dos bancos credores, a capitalização das empresas ou o ajuste fiscal do governo. Salva-se o abstrato em detrimento do concreto, a vida humana.


O espantoso dessa lógica é admitir, como mediação, a morte anunciada. Mata-se cruelmente através do corte de subsídios a programas sociais; da desregulamentação das relações trabalhistas; do incentivo ao desemprego; dos ajustes fiscais draconianos; da recusa de conceder aos aposentados a qualidade de uma velhice decente.


A lógica cotidiana do assassinato é sutil e esmerada. Aqueles que têm admitem como natural a despossessão dos que não têm. Qualquer ameaça à lógica cumulativa do sistema é uma ofensa ao deus da liberdade ocidental ou da livre iniciativa. Exige-se o sacrifício como prova de fidelidade. Não importa que Isaac seja filho único. Abraão deve provar sua fidelidade a Javé. E não há maior prova do que a disposição de matar a vida mais querida.


A lógica da vida encara o relato bíblico pelos olhos de Isaac. Este não sabia que seria assassinado, tanto que indagou ao pai onde se encontrava o cordeiro destinado ao sacrifício. Abraão cumpriu todas as condições para matar o filho. Subjugou-o, amarrou-o, colocou-o sobre a lenha preparada para a fogueira e empunhou a faca para degolá-lo.


No entanto, inspirado pelo anjo, Abraão recuou. Não aceitou a lógica da morte. Subverteu o preceito que obrigava os pais a sacrificarem seus primogênitos. Rejeitou as razões do poder. À lei que exigia a morte, Abraão respondeu com a vida e pôs em risco a sua própria, o que o forçou a mudar de território.


Se não mudarmos de território – sobretudo no modo de encarar a realidade -, como Abraão, continuaremos a prestar culto e adoração a Mamom. Continuaremos empenhados em salvar o capital, não vidas, e muito menos a saúde do planeta.


[Frei Betto é escritor, autor de "Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes), entre outros livros.
publicado por Do-verbo às 01:20

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